DEZ LIÇÕES DAS ENCHENTESTEN LESSONS FROM THE FLOODS
- Gilmar Zampieri
- 13 de mar.
- 26 min de leitura
Atualizado: 14 de mar.

Resumo: O artigo pretende pensar as enchentes que aconteceram no Rio Grande do Sul, desde uma perspectiva transdisciplinar, aliando diagnóstico, causas e atitudes que se impõe para o pensamento e ação, reposicionando-nos política, ética e educacionalmente frente aos desafios das mudanças climáticas. O artigo faz isso em forma de lições e ensinamentos que se podem tirar das enchentes, conectando temas e problemas de uma forma circular e integralmente.
Palavras-chaves: lições, enchentes, aquecimento global, mudanças climáticas, conversão ecológica.
Abstract: The article intends to think about the floods that occurred in Rio Grande do Sul, from a transdisciplinary perspective, combining diagnosis, causes and attitudes that are imposed for thought and action, repositioning ourselves politically, ethically and educationally in the face of the challenges of climate change. The article does this in the form of lessons and lessons that can be drawn from the floods, connecting themes and problems in a circular and integral way.
Keywords: lessons, floods, global warming, climate change, ecological conversion.
Viver é perigoso (Guimarães Rosa).
Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivém, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor (Guimarães Rosa).
Introdução
Se Deus se revela por obras e palavras, é por obras e palavras que o humano, imagem e semelhança de Deus, se dá a conhecer. Agora que viver se tornou ainda mais perigoso, o que é urgente é a ação, a obra. “Mãos à obra”, ouve-se dizer, para reconstruir o que as enchentes destruíram. Para os práticos e homens de ação, talvez seja cedo para tirar lições e interpretar o acontecimento de maio e, por enquanto, dizem estes, mais do que interpretar, cabe reconstruir e transformar o estado de coisas do Estado. Contudo, não há contradição entre ação e palavra, entre ação e logos (pensamento), entre ação e tirar lições da ação ou tirar lições da inação, caso tenha ocorrido. A ação confirma a palavra e a palavra ilumina a ação. “No princípio era a ação” (Goethe). “No princípio era o logos” (Jo 1,1). Entre Goethe e João, fiquemos com os dois. O que vem antes, o que inaugura a existência e o movimento das coisas, a palavra ou a ação? Talvez possa se dizer que há uma circularidade e o “círculo é a festa do pensamento” (HEIDEGGER, 1977, p.12). Até porque agir já é uma forma de falar e falar é uma forma de ação. É da circularidade entre palavra e ação, ação e palavra que se pode almejar reconstruir as vidas, as estruturas e o sentido da vida depois da catástrofe.
Por muito tempo se disse que estamos na “era da incerteza” (Heisenberg). Heisenberg falava do mundo subatômico, do infinitamente pequeno. Isso parece não ter mudado, a física quântica ainda reina no meio científico. Contudo, no infinitamente grande, no global, pelo menos no planeta terra, as coisas mudaram e já não há incerteza de que estamos diante do perigo. Nunca antes a frase do Guimaraes Rosa teve o real significado que ela indica. Viver se tornou perigoso. As ameaças à vida advêm de todos os lados e, agora, de uma potência inigualável, a natureza.
As chuvas torrenciais que atingiram o Estado do Rio Grande do Sul, em maio de 2024, não foram um fato, uma manifestação previsível e circunscrita no tempo e no espaço. Não. Fatos ou eventos de chuva, às vezes torrenciais, acontecem a todo instante. O que ocorreu não foi um fato corriqueiro dentro da normalidade, mas foi, antes, um acontecimento no sentido de Alain Badiou, isto é, “uma coisa que acontece e cujas consequências são incalculáveis” (2012, p.18), que além de romper a rotina e beirar ao extraordinário, tem força de mudar o curso da história, e como tal precisa ser tratado, pensado e interpretado. Pensar o ocorrido enquanto acontecimento, e não simplesmente como mais um fato ou evento chuvoso, significa pensá-lo em sua complexidade e em sua totalidade, pelo poder que tem de reconfigurar estruturas e modos de nos relacionarmos uns aos outros, com a terra e com as cidades. Para abarcar a totalidade não basta falar a partir, unicamente, da técnica, da engenharia, da governança, das soluções de contenções e da logística das casas das bombas que ajudam conter e drenar as águas. Um acontecimento é “acontecimento” exatamente porque atinge todas as dimensões do saber e do fazer. E esse atingiu, e tem o poder de mudar os rumos da história, se dela quisermos aprender algo. Assim, merece ser tratado, interdisciplinarmente, sob pena de fracassarmos novamente.
A reconstrução do Estado, por palavras e ações será obra coletiva e as formas de interpretações desse fenômeno que, dizem os sábios e entendidos, tende a se repetir de agora em diante com mais frequência, também só poderá ser coletiva. Não há gênio da lâmpada, nem mágico e sua cartola e nem mesmo Deus fará o que nos cabe a cada um. Claro que podemos contar com Deus e, como nos diz, novamente, Guimarães Rosa, “com Deus existindo, tudo dá esperança, sempre um milagre é possível”.
De minha parte sugiro 10 lições que podemos tirar do acontecimento e que, além de se aproximarem de uma tentativa de interpretação e compreensão, pretendem demarcar as camadas ou níveis de aproximação da totalidade do fenômeno. As lições não estão em ordem de importância hierárquica. Elas são circulares, uma reclamando e complementando a outra e por conta disso, tal como um círculo, não importando onde se está, sempre se estará equidistante do centro e, aqui, o centro são os acontecimentos de maio.
1. O aquecimento global
As fortes chuvas de abril e maio que causaram deslizamentos e enchentes sem precedentes no Estado do Rio Grande do Sul, superando em muito as enchentes de 1941, com consequente inundação e desalojamento de milhares de pessoas, são um acontecimento dentro de um acontecimento ainda maior: o aquecimento global. Quem não conseguiu fazer essa conexão terá perdido a oportunidade de ligar a parte ao todo, o local ao universal, reconciliar-se com a ciência e com a racionalidade e, finalmente, livrar-se do negacionismo climático, reposicionando-se assim frente aos novos tempos.
Cientistas do clima e, mais recentemente o Papa Francisco, tentaram desesperadamente nos alertar para o fato que o aumento dos gases de efeito estufa (dióxido de carbônico, metano e óxido nitroso) elevaria a temperatura acima dos 1,5 graus em relação ao início da revolução industrial (1850-1900) e nos conduziria, inevitavelmente, a acontecimentos extremos (chuvas torrenciais, ondas de calor, incêndios florestais, aumento do nível do mar, secas, furacões etc). Acontecimentos tão extremos com possibilidade de eliminação de boa parte da biodiversidade a tal ponto de já ser possível falar em ecocídio ou sexta extinção. Essas previsões já não são projeções, mas realidade, bem antes do esperado, o que tem surpreendido o maior climatologista brasileiro, Carlos Nobre, chegando este a dizer que está literalmente “apavorado” com a velocidade da degradação dos biomas brasileiros, sobretudo o cerrado e a Amazônia e que, talvez, já não haja ponto de retorno, caso não se reduza as emissões de gases de efeito estufa, evitando que a temperatura média passe dos 1,5ºC. Na mesma direção vai David-Wells (2019, p. 11) que há cinco anos nos alertava em seu livro, Terra Inabitável: “é pior, muito pior do que você imagina”. David-Wells traça cenários assustadores, caso não ocorra uma mobilização mundial para conter o aumento da temperatura na terra.
Mas por várias razões, por acharmos inevitável, imprudência ou por negarmos, não levamos os alertas a sério. Agora, contudo, não dá mais para desconhecer que o Capitaloceno tem nos colocado num estado de crise e de temor pela irreversibilidade do apocalipse climático. Porém, é melhor temermos e agirmos, caso ainda haja tempo, do que continuarmos alegando a fatalidade do fenômeno ou que o aquecimento global não passa de narrativa criada com interesses ideológicos por ambientalistas e ecologistas de matriz progressista.
Essa postura, típica de uma forma de pensar a política com viés distópico, mais do que com horizonte utópico, defensora do capital exploratório, insensível aos destinos da terra e dos pobres, ao invés de pensar em resolver a redução de gases de efeito e estufa, através de uma ampla transição energética, e reduzir a desigualdade no mundo, dobra a aposta, acelerando o processo apocalíptico para, se for o caso, eliminar uma parcela da população mundial ou, no mínimo, deixá-lo sem condições dignas de existência. Isso nos obriga a nos reorientarmos politicamente, como bem mostrou Bruno Latour (2020), se almejamos um futuro comum como espécie humana. Dobrar a aposta, colocando o pé no acelerador em direção ao abismo, ao invés de frearmos e encontrarmos saídas para todos, só pode vir de pessoas irresponsáveis e inconsequentes, preocupados tão somente em tirar proveitos financeiros individuais das catástrofes.
Apoiar esses negacionistas oportunistas, será como se estivéssemos extasiados, nos jardins Herculanos, cinco minutos antes do Vesúvio cuspir lavas, somente que agora, sem as bençãos da ignorância.
A bem da verdade, está mais do que na hora de pararmos de ideologizar o aquecimento global, como se fosse coisa dos progressistas e da esquerda. A ciência não é nem de esquerda e nem de direita, ela pertence à verdade. Negar a verdade não é uma sábia atitude e pode ter consequências desastrosas, inclusive para quem a nega.
Contudo, para além do debate ideológico, há uma metáfora que explica o comportamento relutante diante das mudanças climáticas. Trata-se da metáfora do “sapo na panela”. Não sugerimos que se faça o teste, por respeito ao sapo... A narrativa diz que se colocarmos um sapo dentro de uma panela de água fervente, ele, imediatamente, pulará fora e se salvará. Contudo, se colocarmos um sapo dentro de uma panela de água fria e adicionarmos fogo, aquecendo a água lentamente, ele não se aperceberá que está sendo cozido vivo. Já estamos dentro da panela e a água está esquentando. Sermos cozidos vivos não é uma boa alternativa, sobretudo para seres inteligentes como nos intitulamos. Aliás, chega a ser paradoxal nos considerarmos uma espécie inteligente, já que fazemos tantas coisas que conspiram para nossa autodestruição. Nenhuma espécie, fora a humana, conspira para a autodestruição. Não podemos chegar ao ponto de ter que dizer, com Heidegger, que “já só um Deus nos pode ainda salvar”. Heidegger dizia, nos anos 60, num contexto de modernidade em crise de valores e com alto poder tecnológico, capaz de autodestruição. Parece que nada mudou, e se mudou não foi para melhor. Essa parece ser a lição maior!
2. Antropocentrismo desordenado
O antropocentrismo é uma perspectiva filosófica, teológica e científica, com pretensão de posicionar o ser humano como centro do universo, postulando ser a humanidade a entidade mais significativa do cosmos, com status tão excepcional a ponto de considerar que somos uma substância mais próxima de Deus e dos anjos do que de um animal. Essa perspectiva de soberania humana sobre todas as outras espécies, sustenta que valores e necessidades humanas estão acima de qualquer valor e necessidade das outras criaturas. Em última instância, a postura antropocentrista trata como coisas e recursos naturais todos os outros seres vivos, animais e vegetais, e a terra em sua totalidade, não como “irmã e mãe”, como pensava São Francisco de Assis, mas como um ser a ser dominado e explorado em benefício e utilidade humana. Essa concepção utilitarista, capitaneada pelo sistema capitalista, sem limites, nos levou ao estado de coisas que agora sofremos as consequências.
Por postura antropocêntrica desmatamos as florestas, matamos impiedosamente bilhões de animais todos os anos e desertificamos solos férteis através de monoculturas que dão retorno financeiro imediato, mas que a longo prazo causam danos irreversíveis à terra. Por antropocentrismo criamos um sistema econômico que estimula desejos ao invés de necessidades. Por antropocentrismo tratamos a terra como um depósito infinito de recursos a nosso dispor. Por antropocentrismo consumimos tudo o que podemos como se não houvesse amanhã. Por antropocentrismo aliado a um sistema de lógica de acumulação e crescimento infinito, tornamo-nos incompatíveis com um planeta finito. Vai ser por antropocentrismo aliado ao capitalismo que, se não mudarmos, escolheremos o fracasso e conheceremos o esgotamento dos recursos naturais e a biodiversidade, por um lado, e a convivência com efeitos extremos por outro. Vai chegar a hora em que teremos que escolher entre viver saudavelmente ou viver perigosamente, tendo a natureza não mais como aliada da comunidade de vida, mas revoltada e inóspita.
A questão que se coloca é o seguinte: haveria uma outra forma de viver e pensar que não fosse antropocêntrica? Papa Francisco discute essa questão na Laudato Si´ e argumenta que seria fundamental distinguir o antropocentrismo desordenado (LS 118) do antropocentrismo ordenado no sentido de que o homem seja um “administrador responsável” (LS 116), que supere uma cultura do descarte e do relativismo que “provoca ao mesmo tempo a degradação ambiental e a degradação social” (LS 122).
Antropocentrismo ordenado e administrador responsável. Essa é a solução proposta pelo Papa. Talvez poderíamos pensar, para efeito conceitual, além do Papa e propor o biocentrismo diferenciado. O que seria o biocentrismo diferenciado? O centro da criação e todo o processo da evolução da natureza conduziu para a comunidade de vida e não para o humano. O homem foi criado no sexto dia, mas a culminância se dá no sétimo dia, no sábado da confraternização da comunidade de vida. Toda a comunidade de vida, por isso biocentrismo. Contudo, na comunidade de vida o ser humano ocupa um lugar especial, pois é através dele que o universo toma consciência e pode ser contado. O ser humano é a voz do universo. O ser humano é a boca do universo. Sem o humano o universo deixaria de ser narrado, contado e isso não é pouca coisa. Ou como diz Marcelo Gleiser (2024, p. 11), também defensor do biocentrismo, “o universo só tem história porque estamos aqui para contá-la”.
Mas isso não é tudo. O humano é, além da voz e da consciência do universo, o único animal vivente que carrega a lei moral dentro de si e, portanto, age não só por necessidade e por prazer, mas também por dever. Então, pode ser que não sejamos o ser mais forte da natureza e muito menos um ser independente das outras espécies, superior e separados das menores das criaturas, afinal, como nos diz Tsing (2019, p. 73ss):
noventa por cento das células em nossos corpos não têm assinatura genética; elas são bactérias. No entanto, elas estão conosco, e nós precisamos delas. Nossos corpos vêm a ser através delas...somos mais parecidos com fungos micorrízicos do que imaginamos...isso faz uma enorme diferença para nossa teoria de ação humana no mundo. Como os humanos podem agir como uma força autônoma se o nosso “nós” inclui outras espécies que fazem de nós quem somos?
Essa é uma pergunta perturbadora e verdadeira, contudo não podemos não continuar dizendo que somos o único ser livre e com autonomia moral e, portanto, responsáveis no sentido do termo. Essa diferença, contudo, não nos dá nenhum direito de agir despoticamente contra outras espécies e a natureza. Pelo contrário. A diferença eleva o nosso papel e com ele a nossa responsabilidade. Será que estamos à altura do lugar que deveríamos ocupar de cultivar e cuidar da natureza? Ou nos pervertemos a tal ponto de merecermos o revés da natureza?
A lição que se depreende da catástrofe é de que precisamos pensar em um novo humanismo, agora mais modesto e integrado ao conjunto dos seres vivos e não vivos, porque não estamos acima dos outros seres e muito menos acima da terra. Pertencemos à terra e o que lhe acontece, repercute em nós. Salvar a terra, é salvar-nos, e não o contrário. Quem quiser salvar a si mesmo, sem salvar a terra, perderá a vida, sem ganhar o cêntuplo no céu...
3. Governança local
Uma terceira lição que se pode tirar da catástrofe é de que os novos tempos requerem agentes políticos capacitados, com o mínimo de preparo intelectual na compreensão das mudanças e emergências climáticas e com o máximo de interesse público para prepararem as cidades e os cidadãos para um outro patamar de resiliência. A questão climática é global e as soluções ou serão globais ou não serão soluções. Contudo, nada mais global do que o local. As governanças globais não farão o que cabe a cada um fazer no seu jardim. E os problemas acontecem mesmo no local, no jardim. O jardim pode ser o jardim mesmo, da casa, mas pode ser o bairro, a cidade ou o Estado como ente da federação. “Cultivar o nosso jardim” pode ser uma metáfora para dizer que o prefeito nas cidades e o governador do Estado não podem justificar sua inércia alegando ignorância ou surpresa no excesso de chuvas, protegendo-se, assim, atrás da ignorância ou da surpresa. Já não dá para negar e muito menos esperar que as desgraças aconteçam para agir. E quando as catástrofes acontecem, não parece ser prudente entregar o problema às mãos da sociedade civil e os seus membros, os cidadãos. Cabe ao poder público a responsabilidade maior. Assim como foi na pandemia, a sociedade civil e os indivíduos em sua ação, puderam muito, mas o decisivo foi o que veio das autoridades em seus vários níveis. Um agente político despreparado e insensível aos dramas, sobretudo da população mais vulnerável, é uma desgraça para todos.
No caso específico das enchentes de maio no Rio Grande do Sul, são muitos os estudos e relatórios de especialistas dando conta que houve negligência no gerenciamento dos sistemas de contenção e de drenagem das águas com casas de bombas mal projetadas e sem os devidos cuidados na manutenção. Não dá para continuar transferindo responsabilidades. O que cabe aos cidadãos, à sociedade civil, as empresas e até a organismos internacionais, que lhe seja atribuído responsabilidades. Mas, o que é de responsabilidade dos prefeitos e do governador, que lhe seja imputada responsabilidade, se não for jurídica, que seja moral. Só como exemplo, o caso de Porto Alegre é paradigmático. O poder público tem sido incansável em favorecer a indústria da construção civil, ocupando áreas nobres da cidade, desmatando, aplainando, asfaltando, reduzindo tudo a cimento, inclusive na orla, lugar que deveria ser de reflorestamento e não de desmatamento em nome do “progresso” de uma cidade vertical e sem horizontalidade harmoniosa e acolhedora da biodiversidade.
A lição que se impõe nesse aspecto é de que, de agora em diante, não é prudente entregar o poder político a quem não demonstra sensibilidade ecológica. De outro lado não é razoável entregar o poder público a quem se preocupa mais com os donos do poder imobiliário do que na população em geral, sobretudo os mais vulneráveis. Nesse aspecto as cidades precisam repensar-se a partir do horizonte de criação harmoniosa do espaço vital e de convivência para todos.
4. Educação ambiental
Aqui a lição parece evidente. Da criança ao ancião, é urgente uma alfabetização ambiental que prepare e desperte as consciências da atual geração e as gerações futuras para viverem e enfrentarem os desafios que virão das mudanças climáticas. E mais, os processos formativos formais, nas escolas e universidades, terão que incluir na sua agenda os conteúdos mínimos que fazem parte da “matéria” ambiental. Estamos passando por uma mudança de tempo em que ou se muda a relação dos humanos com a natureza ou quem mais sofrerá será o próprio humano. Isso tem que ser ensinado nas famílias, nas escolas, nas igrejas, nos sindicatos, nas empresas e em qualquer espaço da vida ativa.
O conhecimento das causas do caos climáticos e seus responsáveis maiores, a saber, o “paradigma tecnocrático” capitalista, como nos diz o Papa Francisco na Laudato Si´, que se estrutura sobre a queima de combustíveis fósseis que representam 70% das emissões dos gases de efeito estufa, a mineração e agropecuária, bem como o conhecimento sobre ecossistemas, biodiversidade, preservação do meio ambiente e relação entre produção e consumo consciente, não pode mais ser reservado a especialistas. Há um enorme desafio educacional que deverá entrar em pauta em todos os âmbitos da formação da consciência. Seria temerário perdermos novamente a oportunidade de estarmos à altura do tempo. Continuar vivendo como se nada tivesse acontecido, seria a continuidade da tragédia na forma mais elementar de alienação.
A educação é exatamente o processo de passagem da ignorância à ciência, da inconsciência à consciência, da alienação à apropriação de si para viver na autonomia e responsabilidade própria de adultos livres. As escolas, de forma particular, estão convocadas a aproveitar o que aconteceu no Rio Grande do Sul e incluir nos seus currículos de forma específica ou transversal, os temas acima elencados.
Pesquisas apontam que os indivíduos até conectam o que está acontecendo com as mudanças climáticas, não as negam, contudo, pensam que não serão atingidos ou que não são responsáveis por elas. O individualismo é uma névoa espessa que não nos deixa enxergar que na medida em que participamos do sistema de produção e consumo atual, direta ou indiretamente somos todos responsáveis e que estamos todos no mesmo barco, mesmo ocupando acentos diferentes. Educar para a ideia de que “todos somos um”, e que “tudo está interligado” e que o que afeta o meio ambiente nos afeta, mas que em relação a natureza somos a parte mais fraca, é o desafio maior. Os próprios educadores estão convocados a passar por um processo de reeducação em que a educação ambiental lhe seja natural. O fato é que não estamos preparados para o que já está entre nós e essa parece ser a lição a ser aprendida e ensinada.
5. Ciência, técnica e política
A ciência está fazendo sua parte. O consenso científico é quase absoluto quanto às mudanças climáticas, suas causas e o que nos espera se continuarmos o comportamento atual de exploração desenfreada dos recursos naturais, poluindo e matando o que vem pela frente, queimando as florestas e queimando os combustíveis fósseis que redundam em aquecimento global. Sólidas evidências científicas reunidas ao longo das últimas décadas dão conta de que a atividade humana é a principal responsável pelas alterações climáticas e que estas vieram para ficar.
Além disso os cientistas do clima e do meio ambiente são incansáveis em chamar atenção para o perigo do incorreto manejo do solo, do perigo das monoculturas, da necessidade de respeitar e preservar as florestas, de preservar as matas ciliares e de encostas, do desassoreamento e despoluição dos rios, da reciclagem dos resíduos sólidos, do uso racional da água, da proteção das nascentes dos rios.
Por outro lado, os experts têm alertado para a necessidade de prepararmos as cidades para o novo normal. Cidades resilientes capazes de resistir e se recuperar rapidamente em casos de catástrofes, requerem sistema de cidades-esponjas, que facilite a absorção da água e evite alagamentos reduzindo assim os danos das chuvas torrenciais que serão mais frequentes por conta dos efeitos extremos do aquecimento global. Para isso, as cidades construídas ao longo ou ao lado de rios ou grandes lagos necessitam repensar sua relação com as águas, reflorestando as beiras com máximo de vegetação para absorção da água, que evite erosões e que evite que a lama corra para o rio ou lago.
A questão, então, é como conectar racionalmente o que a ciência diz e o que a técnica é capaz de fazer, com a vontade política dos líderes e gestores públicos. Nesse aspecto cabe incluir outro elemento na relação ciência, técnica e política. Esse outro elemento é a economia. E a economia que é a ciência de gerenciamento de recursos escassos, precisa ser repensada a partir da consciência ecológica integral e num planeta com recursos finitos. Mas quem deve repensá-la? Os agentes econômicos, sim, até porque as perdas na economia serão astronômicas com o aquecimento global mas, sobretudo, o Estado e a Política. Não dá para continuar subordinando a política à economia de mercado que pensa o mundo a partir do interesse imediato, do privado, do lucro e da exploração dos recursos naturais sem o mínimo de preocupação com as gerações futuras.
Nesse aspecto é preciso resgatar o sentido do poder político que Hannah Arendt (2016) formulou, a saber, o poder político como “capacidade de agir em conjunto” visando contribuir para que uma comunidade histórica possa fazer a sua história. Só a política tem a capacidade de “agir em conjunto”, visando o bem comum e não somente o bem privado. Nesse aspecto o neoliberalismo que prega o Estado mínimo e o lucro máximo do grande capital, precisa ser revisado e superado, para o bem-estar geral.
Seria imprudência continuar entregando à técnica e à economia de mercado os destinos de um povo. Uma grandeza tão nobre igual ao destino de um povo só pode ser entregue às mãos do povo sob representação política, conduzida por princípios e valores éticos. Políticos que representam os donos do poder econômico de uma cidade ou Estado, mais do que representar os anseios e necessidades populares, ou as demandas da ciência, no caso em questão, a ciência ecológica, deveriam, de alguma forma, passar por algum tribunal em que fossem confrontados com a verdade e não com as narrativas diversionistas de caráter ideológico que sustenta o sistema capitalista de desastre.
6. Solidariedade radical
Uma lição positiva que aprendemos das enchentes foi de que a solidariedade, pelo menos nas desgraças, é mais forte do que o egoísmo que nos governa no dia a dia. Não que seja propriamente novidade. Isto sempre ocorre. Parece ser algo natural. Na alegria e felicidade do outro, o sentimento que aflora é a inveja ou a indiferença. Na dor e no sofrimento, a empatia e compaixão despertam com força e vigor. A evolução que nos trouxe até aqui, no processo civilizacional, só foi possível pela colaboração e estreitamentos de laços de conexão e de pertencimento a um único destino, o destino humano. Na dor e sofrimento, o destino humano é comum, e é por conta disso que, naturalmente, nos solidarizamos. É como se o que acontece ao outro me dissesse respeito, mesmo que não o conheça. Seria insuportável conviver com a própria consciência, indiferente a dor alheia.
Os sentimentos e valores mais profundos, os valores éticos, quase exigem dos sobreviventes e dos de melhor destino que se dobrem e desdobrem para que os infortunados tenham algum tipo de consolo e respiro através do socorro prestado, até o ponto do auto sacrifício em nome do resgate da dignidade do outro. É como se todos disséssemos juntos: a minha dignidade resulta da dignidade do outro.
O sentimento de culpa, um dos sentimentos morais mais profundos, afloraria caso ficássemos insensíveis ao sofrimento do outro quando o que se pode fazer, sem prejuízo equivalente nosso, puder salvar o outro em sua vida e dignidade.
Foi o que aconteceu nas enchentes e de alguma forma nos orgulhou de pertencermos a espécie. Foi emocionante ver tantas pessoas anônimas ajudando, resgatando e se voluntariando em várias frentes de ação, tanto nos abrigos de acolhimento como, posteriormente, na reconstrução das moradias e no suporte de alimento, água, material de limpeza. A solidariedade é um valor ético que envolve empatia, compaixão e disposição de sair de si para uma causa maior, a causa dos outros. É da solidariedade, e não do egoísmo, que se pode almejar uma sociedade mais justa, com menos necessidades e sofrimento. Se o egoísmo mata, a solidariedade e o amor regeneram. Essa lição marcou as consciências do povo brasileiro e permanecerá na memória como algo que engrandece a alma humana.
7. Conversão Ecológica
Uma sétima lição que se pode tirar das enchentes é de que precisamos passar de um tipo de conversão espiritualizante e desencarnada, que abre mão desse mundo em favor de um outro mundo, com movimento de terra para o céu, para uma espiritualidade do céu para a terra, com fidelidade à terra, sem fuga do mundo. Em palavras simples isso significa dizer que cuidar e salvar a terra e os animais é salvar-se a si mesmo. Na radicalidade, daria para dizer que fora da ecologia não há salvação possível. A sotereologia não pode ser reduzida a ecologia, mas não haverá verdadeira salvação sem salvar o que possibilita e nutre a vida, isto é, a terra. Assim como não há alma sem corpo, não haverá vida possível sem uma nova espiritualidade que passe por uma profunda conversão ecológica. Não adiante continuar afirmando que Deus salva, se não colaborarmos com ele na salvação do espaço vital que é a nossa mãe e irmã terra.
Para os cristãos, o Evangelho pode ser fonte de uma espiritualidade e conversão ecológica que muda a forma de pensar, sentir e viver. Os cristãos têm uma tradição rica a ser recuperada em favor de uma espiritualidade ecológica, mas é preciso vencer os obstáculos do realismo pragmático e do utilitarismo, que tomou conta da vida, e da passividade que nos impede de mudar hábitos. Para isso, o encontro com Jesus pode ser uma fonte inesgotável de conversão, de mudança interior e mudança comunitária no trato da “casa comum”. E não podemos esquecer de São Francisco de Assis, aquele que encarnou como ninguém a conversão ecológica, tratando a todos como irmãos e irmãs, sendo incapaz de fazer o mal, sequer à menor das criaturas.
Enfim, a conversão ecológica requer uma mudança profunda na forma como nos relacionamos com a natureza, com os animais e conosco mesmo, sobretudo os mais vulneráveis. O Papa Francisco nos dá a direção quando se trata de conversão ecológica. Recordando São Francisco, ele nos diz: “Recordemos o modelo de São Francisco de Assis, para propor uma são relação com a criação, como dimensão da conversão integral da pessoa. Isto exige também reconhecer os próprios erros, pecados, vícios ou negligências, e arrepender-se de coração, mudar a partir de dentro” (LS 218).
O processo de conversão pode emergir e despertar por variados estímulos, internos ou externos. Meditar, ler, informar-se e tomar conhecimento pode dar origem a mudanças de posição frente ao mundo. Às vezes um filme, um documentário ou mesmo uma conversa com alguém, pode ser ocasião de mobilização das energias para uma mudança de relação com o outro e com a natureza. Contudo, nada é mais poderoso para despertar para a conversão ecológica do que um acontecimento tão grandioso como foram as enchentes de maio. Continuar vivendo como se nada tivesse acontecido, seria pecar contra o Espírito Santo, único pecado que não tem perdão. Pecar contra o Espírito Santo é se recusar a ver o que é evidente aos olhos e se impõe como uma espécie de manifestação divina.
8. Sobriedade Feliz
Sobriedade feliz é uma bela expressão utilizada pelo Papa Francisco, na encíclica Laudato Sí, para caracterizar o hábito de viver, não segundo a lógica do consumismo estimulado pelos desejos, mas com o que é necessário para que todos tenham vida digna. A expressão acena para uma outra forma de estar no mundo, sem antropocentrismo desordenado e sem consumismo destrutivo da natureza e do humano. Destrutivo do ser humano porque viver segundo os desejos do consumo cava no centro da alma humana uma falta permanente, uma angústia e uma sensação de vazio sempre que não se estiver em sintonia com a moda, com a marca, com o novo produto que o mercado oferta. Sobriedade feliz é uma forma alternativa de vida humana capaz de alterar os rumos da sociedade, possibilitando um fôlego de esperança que o capitalismo não nos consuma. Sobriedade feliz é a atualização daquilo que Marcuse dizia nos anos sessenta, nos tempos da contracultura. Ele dizia que para fazer frente ao capitalismo e o derrotar, só dançando. Dançar, contemplar e viver feliz com o mínimo necessário e não o máximo permitido, eis o segredo para frear o encontro com o abismo. Essa lição deveríamos ter aprendido dos acontecimentos de maio.
A conversão ecológica implica em ser feliz e alegre, vivendo em paz com o que se tem, pois ao que o pouco não basta, nada basta. Alegrar-se com o pouco que se tem e não com o muito que se poderia ter e que causa angústia, eis o segredo. Este é um segredo da espiritualidade franciscana e cristã. Quem tudo quer, não encontra porto seguro para a alegria com o que tem, e vive a angústia do insatisfeito. Por que seguir os desejos, se esses são infinitos? Quem vive de alimentar esses desejos, vive infeliz e causa estragos à natureza. Importa recuperar o ato de rezar, agradecer e contemplar, mudar a forma de pensar e se reposicionar no mundo.
Vale aqui destacar uma sabedoria que vem de longe, com vários matizes e representantes. É atribuída a Sócrates a ideia de que cada vez que ele passeava nos mercados de Atenas e percebia a quantidade de coisas à venda, dizia para si mesmo: “quantas coisas me são desnecessárias para viver”.
Mais paradigmático ainda é Diógenes de Sínope. Ele renunciou absolutamente tudo o que a sociedade e o mercado lhe poderiam oferecer e se bastava em sua liberdade e autonomia com aquilo que a natureza lhe havia munido. Vivia num barril e convivia com os cachorros, tal mendigo, mas mendigo não era, pois era filósofo. Ele dizia que para viver bem e feliz não é necessária uma vida abastada, no sentido de possuir meios de acomodação e conforto, mas viver bem, na simplicidade, porque, como ele proclamava frequentemente, ‘os deuses haviam concedido aos homens meios fáceis de vida, porém os homens perderam de vista este benefício, pois necessitam de bolos de mel, de unguentos e de coisas semelhantes’ (LAERTIOS, 1977, p.163).
Nesse sentido pode-se compreender melhor o mais famoso episódio de sua vida. Um dia Diógenes estava tomando banho de sol em seu barril e Alexandre, o Grande, sabendo de sua fama de sábio, procurou-o para se aconselhar. Quando chegou junto a Diógenes, Alexandre ofereceu a Diógenes o que ele bem quisesse em troca de seu saber. Diógenes o surpreende e lhe diz: “Senhor, apenas não tire de mim o que não pode me dar”. Assim respondeu, pois Alexandre se interpunha entre ele e o sol. O que são as coisas do mundo perto do prazer e da felicidade dos raios do sol no corpo? Sobriedade feliz, eis o segredo!
Nesse aspecto há uma longa sabedoria indígena com uma forte crítica ao consumismo do homem ocidental branco. David Kopenawa representa bem essa sabedoria quando diz que “os brancos quase não dormem. Só falam de trabalho e do dinheiro que lhes falta. Vivem sem alegria e envelhecem depressa, sempre atarefados, com o pensamento vazio e sempre desejando adquirir novas mercadorias” (KOPENAWA, 2015).
O Papa Francisco sintetiza lúcida a sabiamente essa tradição, quando fala da sobriedade feliz, fazendo eco a uma longa tradição franciscana que faz conviver a alegria com a sobriedade, ao dizer:
É possível necessitar de pouco e viver muito, sobretudo, quando se é capaz de dar espaço aos outros prazeres, encontrando satisfação nos encontros fraternos, no serviço, na frutificação dos próprios carismas, na música e na arte, no contato com a natureza, na oração. A felicidade exige saber limitar algumas necessidades que nos entorpecem, permanecendo assim disponíveis para as múltiplas possibilidades que a vida oferece (LS 223).
A gaúcha Elis Regina resume em poesia o que a tradição filosófica e teológica trata de forma sofisticada e com bons argumentos. Ela diz,
Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros
E nada mais
E nada mais. Tantas coisas seriam possíveis, mas Elis diz o que todos os que pautam a vida pela sobriedade feliz gostariam de dizer: “e nada mais”.
Viver diferentemente, sem ser engolido pela lógica do consumo infinito que o capitalismo propõe, controlando os desejos em nome de uma vida mais saudável e com menos impacto negativo para a natureza, eis o segredo. Essa parece ser uma lição importante a ser tirada da tragédia como acontecimento dentro de um acontecimento maior, o aquecimento global e seus efeitos extremos.
9. Deus e o mal
Outra lição importante a ser aprendida das enchentes diz respeito a já clássica relação entre Deus e o mal. Sempre que acontece uma catástrofe que não conseguimos explicar totalmente, passamos, quase de imediato, para uma explicação religiosa e teológica dizendo ser um recado de Deus ou até mesmo um castigo divino por conta dos nossos equívocos e pecados. Retrocedemos assim à mentalidade bíblica anterior a Jó. Que mentalidade é essa? A que pensa a partir da relação simplista de que se algo de bom fizermos, Deus nos recompensa e se algo de errado fizermos, Deus nos punirá e nos amaldiçoará.
Essa postura ficou conhecida como a teologia da retribuição, com forte apelo popular por conectar causa e efeito de uma forma linear e sem complexificações. Acontece que essa leitura cria uma imagem distorcida de Deus e não faz jus ao que temos de mais límpido na compreensão de Deus, isto é, que ele é bom e que ele é amor. A imagem de Deus punidor foi construída à nossa imagem e semelhança, isto é, é antropomórfica e não faz parte do Deus revelado. Nós punimos e recompensamos conforme o mérito, mas Deus está para além do mérito ou demérito. Não entender isso é perverter o que há de mais sagrado na revelação divina que é a doutrina da graça. Não fosse assim, estaríamos todos irremediavelmente perdidos. E mais, estaríamos entrando em contradição insolúvel, pois Deus puniria inocentes e não dá para acreditar num Deus arbitrário que pune inocentes. Ou alguém acredita que a criança de 7 meses que morreu nas águas em Canoas, morreu por castigo de Deus? E os milhares de animais mortos, que mal fizeram? Não daria para acreditar num Deus que arbitrariamente resolvesse punir uma cidade inteira como se aí não houvesse um único justo ou inocente.
A imagem de Deus que tira o bem do mal, ou castiga os pecadores, precisa ser refeita a partir de Jesus. A bem da verdade nunca deveríamos colocar na conta de Deus, nem a responsabilidade e muito menos a causa das desgraças humanas. Deveríamos colocá-las em outros, menos em Deus. Durante as enchentes houve até padre dizendo que “Deus queria o RS de joelhos”, induzindo-nos a pensar que seria um castigo por algum desvio que teríamos cometido.
No caso do padre em questão, o desvio estaria por conta de que somos um Estado pouco religioso e até com demasiadas religiões não católicas, sobretudo em Porto Alegre. Esses falsos profetas não são novidade. Eles passam e o que permanece é a verdade e a verdade sobre Deus é que ele não é autor do mal e da desgraça, pelo contrário, se há alguma coisa de certa em relação a Deus é que ele também sofre, afinal morreu na cruz, e sofre no sofrimento do mundo e está ao lado dos sofredores e das vítimas do mal, contra o mal. Essa verdade foi encarnada em muitos outros padres, freis, religiosas consagradas e líderes religiosos que, acertadamente, ao invés de especularem sobre questões metafísicas, se colocaram em ação de solidariedade no socorro de pessoas e na pronta ajuda na reconstrução do cenário desolador que tomou conta das cidades atingidas.
Que fique a lição, Deus não é autor do mal, pelo contrário, ele é o anti-mal e está lá onde há lama, sofrimento e cruz em busca de redenção e ressurreição.
10. Há esperança para o futuro?
A esperança é uma virtude teológica para tempos difíceis. Em tempos saudáveis, bons e prósperos são a fé e a caridade que mais crescem. Mas em tempos difíceis e desafiadores, a esperança nos carrega no colo. Em tempos de crise e incertezas, sem a esperança, o futuro se fecha e mergulhamos no medo ou no desespero.
O desespero e o medo são dois afetos tristes e imobilizadores. A esperança, como nos ensina Spinoza, é uma “alegria instável surgida da imagem de alguma coisa futura de cuja realização temos dúvida”. Persiste a dúvida se haverá futuro promissor ou se o futuro está fechado para nós. Não há como não admitir que persiste a dúvida, mas a esperança de que o bem aconteça, também persiste e é ainda mais forte. Há uma dialética, contudo, entre graça e obra, dom e tarefa. Esperar sem nada fazer, seria apostar no mágico e no milagre improvável.
A esperança cristã é um esperançar no sentido de fazer acontecer o que se espera. A esperança cristã, contudo, não duvida. Ela é quase uma certeza, pois está vinculada a Deus e Deus não decepciona. Diz São Paulo: “A esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramando em nosso coração pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).
Santo Agostinho, mesmo que em boa parte seja paulino, parece se afastar dele e se aproximar mais da dialética spinoziana quando acena, de forma poética, para uma atividade, mais do que para uma atitude passiva. Diz Agostinho “a esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão, a coragem, a mudá-las”.
Indignação e coragem. Indignação com o que? Coragem para que? No caso do aquecimento global e antropocentrismo, aliado ao sistema econômico predador e estimulador do consumismo irresponsável, a indignação representará uma mudança de sensibilidade e percepção das causas últimas do problema. Sem uma ajustada analítica das causas, a indignação provavelmente será manipulada pelos moralistas oportunistas ou, simplesmente, não trará resultados eficazes. A coragem de mudar só acertará o alvo se a identificação das causas, mesmo que complexas, for acertada.
Para tanto, há uma tarefa permanente que cabe aos educadores e líderes em geral, qual seja: mobilizar energias para uma nova consciência e reposicionamento, para que estejamos à altura dos desafios que o tempo nos colocam. Sobretudo, é fundamental fazer as coisas acontecerem diferentemente do habitual que nos trouxe até aqui. A esperança só será realista se o processo de conversão ecológica tomar conta de nossas vidas a tal ponto de levarmos a sério as gerações futuras e o direito que elas têm de receber um mundo habitável e em condições favoráveis de existência.
Não custa lembrar, ou nos salvamos juntos ou nos perderemos juntos, não dá para esperar um Noé salvador. Por fim, vale lembrar da epígrafe desse artigo: “Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivém, e a vida é burra”.
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