Hegel afirmava que a filosofia é o espírito do tempo apreendido no conceito. Assim, não cabe à filosofia nem a representação da fé e nem a imagem e representação das artes. Nem cabe à filosofia permanecer no primeiro degrau do conhecimento das certezas sensíveis e, sobretudo, para filosofar, é preciso distanciamento para não pensar com o fígado, mas, de preferência, com a cabeça.
Vivemos tempos difíceis de distanciamento, com forte tendência a repetir mantras e frases prontas, dispostos a brigar na defesa dos pré-conceitos, mas pouco tolerantes e abertos a aprender do outro e, sobretudo, aprender a respeitar a voz das ciências.
Digo isso porque circula no senso comum e, às vezes, em alguns ambientes acadêmicos, sobretudo de tendência neoconservadora, a ideia pré-concebida e acrítica de que a família é a responsável pela educação moral dos filhos e a escola deve escolarizar. Família educar, escola escolarizar, em síntese. Ouve-se isso, inclusive, de filósofos Pops brasileiros e, quando dito por filósofos, parece que não há apelação. Quem se arrisca a contestar os filósofos? Só um outro filósofo...
Voltando. A família educa. A escola escolariza.
Não é errado assim pensar e assim se expressar. Só que uma verdade quando dita pela metade presta um desserviço à própria verdade. Vamos ver.
Que a família educa os filhos, no sentido moral do termo, e ensina valores (não mentir, não matar, não roubar, respeitar etc.) parece mais do que certo. É a família a primeira célula da sociedade e é na tenra idade que somos propensos ao exercício da domesticação. Sim, como dizia Nietzsche, “o homem é um animal domesticável”. E não há habitat mais natural para a domesticação moral do que o lar, a família, o ambiente doméstico, enfim.
E a escola? À escola, dizem os novos gênios da educação, sobretudo, da corrente da escola sem partido, a escola deve escolarizar, isto é, deve formar para a aquisição de habilidades instrumentais e para a inserção na sociedade e no mercado. Nada de ensinar valores! E nada de ensinar a criticar e relativizar valores. E se, por acaso, ensinar valores, então, tem que ser imparcial. Imparcial significa, se bem interpreto, mostrar o outro lado. Ótimo. Eu acho isso bárbaro! Mostrar o outro lado, o outro ponto de vista, o outro argumento, é o que se aprende na primeira aula de filosofia quando se estuda os sofistas. Aprendemos dos sofistas a sempre prestar a atenção ao contraditório e ao outro ponto de vista. É deles que aprendemos que para cada coisa sempre há no mínimo duas formas de ver e de argumentar, em defesa ou contra. Mas isso será tudo?
Não creio que seja tudo. A escola educa sim e não somente faz pensar e adquirir habilidades instrumentais para o mercado do trabalho. Não. Quando formamos para a autonomia, para a liberdade e para a responsabilidade, então estamos educando (e sem relativismo de ter que mostrar o outro lado), e não só escolarizando. Quando formamos para a justiça, para a solidariedade, para a tolerância, estamos educando, e não só escolarizando. Quando discutimos ética ambiental e ética animal, estamos educando, e não só escolarizando. E sobretudo, quando discutimos questão de gênero, estamos educando e não fazendo ideologia. Se a família fosse o limite da educação então deveríamos achar relativo que alguém tenha preconceito com negros, pobres, gays, prostitutas, ateus etc. Via de regra esse ensinamento vem das famílias, ou não? A quem cabe educar para o respeito, a tolerância, para a diversidade e para a universalidade que ultrapassa o valor do sangue (familiar), da religião e da nação? O machismo, o racismo, a xenofobia e a homofobia nós aprendemos em casa, e não na escola. Ou não? Então, calma lá ao dizer que a família educa e a escola escolariza.
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