O título do capítulo já indica a direção. Nem toda política é boa, senão não haveria a “melhor política”. E como não há política boa sem políticos bons, então nem todos os políticos são iguais. Há a política que se baseia no bem comum e promove a fraternidade e a amizade social, e há a política que despreza o bem comum e promove os interesses individuais e de mercado. Alguém poderia objetar que o Papa não deveria falar de política. A esses, não custa lembrar a longa tradição do magistério da Igreja que afirma que a “política é a melhor forma de caridade”. É nesse horizonte que o Papa se move e nos conduz.
A abordagem da melhor política é feita através de quatro pontos que se complementam e formam um todo organizado. Analisemos cada um dos pontos.
Populismos e liberalismos:
É curioso que o Papa entre no debate sobre o populismo e liberalismo, mas quando se lê com cuidado a forma como ele aborda esses dois conceitos, não dá para não reconhecer o seu potencial analítico. Sobre o populismo o Papa faz uma leitura diferente da que estamos habituados. Via de regra, interpretamos os populismos com viés negativo, de tal forma que a imprensa e os analistas chegam a dividir as políticas em duas, as populistas e as não populistas, dando entender que as não populistas são boas e corretas e as populistas são negativas. Não é o que o Papa faz, se bem que também mostra que há populismos que se valem do povo, mas que escondem interesses próprios, menos do povo. Usar o povo contra o povo, eis o populismo de viés negativo. Contudo, é preciso pensar as políticas populares no seu sentido positivo. E, aqui, seria melhor usar o termos “populares” e não populismo. E para tanto, Papa Francisco resgata a positividade do conceito “povo” e, inclusive, dos líderes populares que captam positivamente as necessidades e anseios do povo. Não dá para ignorar a legitimidade da noção de “povo”, sem o qual cairemos, inevitavelmente, na concepção liberal pura que diz que não há povo, mas, somente, indivíduos. Populismo vem de “povo” e se a noção “povo” não tem sentido, sentido também não tem, diz o Papa, a palavra “democracia”, que significa “governo do povo”. A sociedade é mais do que a mera soma de indivíduos e noção “povo” dá conta, exatamente, de dizer isso. Povo é um todo organizado, com objetivos comuns, projetos comuns e sonho coletivos. A soma de indivíduos não dá um todo organizado. Então, é preciso ter cuidado quando se fala em políticas não populistas como sinônimo da “boa política”. Se há um populismo equivocado e fechado que deforma a noção de povo (FT 160), isso não significa que a alternativa seja, automaticamente, o não populismo. Atrás dessa afirmação pode estar escondido os mais altos interesses do mercado, defendido pelo liberalismo. Sobre o liberalismo o Papa é duro. Diz o Papa Francisco: “A categoria do povo, que inclui intrinsicamente uma avaliação positiva dos vínculos comunitários e culturais, habitualmente é rejeitada pelas visões liberais individualistas, que consideram a sociedade como mera soma de interesses que coexistem” (FT 163). Os liberais falam em liberdade, mas sem vínculo a uma narrativa comum. Os liberais, via de regram, acusam de populistas os líderes que defendem os direitos dos mais frágeis da sociedade. Para os liberais, a categoria de povo é uma mistificação e um romantismo. Mas, diz o Papa, isso é um equívoco que esconde interesses dos mais fortes que preferem o povo desorganizado para melhor fazer valer seus interesses privados. O povo organizado nos movimentos populares, sociais e indenitários, são interpretados como um perigo, ao invés de os perceberem como uma força de humanização e libertação que vem da sociedade civil. Os liberais querem mercado como regulador, desconstruindo as instituições e os movimentos de base, críticos do mercado excludente. Sobre o mercado, o Papa é muito claro, direto e crítico. Diz o Papa: “O mercado, per se, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer nesse dogma de fé neoliberal. Trata-se de um pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja” (FT 168). Mas, o mais grave nem é isso. O mais grave no liberalismo é seu total desprezo pelas forças vidas da sociedade que são os movimentos sociais e os seus líderes que o Papa consideram “poetas sociais”. Não reconhecer que deles nasce e se desenvolve uma política dos pobres que resistem e se organizam para a libertação de todas as amarras que impedem de um desenvolvimento integral, é elevar o mercado a um deus mortal, e rebaixar os que foram exaltados por Deus em Jesus Cristo.
O poder internacional:
O poder político dos Estados nacionais são a instância maior de resolução de conflitos, de coordenação de um povo na defesa do bem comum e, sobretudo, para limitar o poder selvagem do mercado, cujo fim são os interesses privados dos mais fortes. Só os Estados nacionais e com os governos que os conduzem, podem ajudar uma comunidade histórica a fazer a sua história. Contudo, há limites para os Estado nacionais, sobretudo em tempos de globalização em que as grandes corporações se sobrepõe aos povos, cultura, nações e próprios Estados, colocando-se acima dos interesses nacionais em favor dos seus próprios interesses, nem sempre confessáveis. O Papa lamenta que da crise de 2008 não tenha surgido maior regulamentação e que não tenham surgido organismos internacionais para preencher o vácuo que nem a ONU nem outros organismos existentes estão conseguindo ocupar. A perda do poder dos Estados nacionais, aliada à fragilidade dos organismos institucional internacionais, faz com que o Papa insista na necessidade de “criação de organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da pobreza e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais” (FT 172). Em tempos globais sem poderes políticos globais, que represente os Estados membros, ficaremos todos reféns do mercado e este das grandes corporações que agem não em nome do bem comum e da fraternidade universal, mas em nome do aumento de seu poder, submetendo povos e culturas à ferocidade do capital que não tem alma e nem coração, mas sobra apetite e desejos por mais capital.
Caridade social e político:
Há vários motivos para desconfiar e até nem mesmo querer ouvir falar de política e dos políticos, sobretudo pelas alianças nefastas que estes fazem com o empresariado que os financiam e depois ficam reféns de seus interesses, ao invés da política servir o bem comum, como seria a sua vocação. É compreensível que se tenha aversão da política pelas promessas falsas, pelas mentiras que os políticos contam, pelos métodos pouco éticos que se valem para chegar ao poder e se manter, pelas falcatruas e desvio de dinheiro etc... Contudo, cuidado! “Poderá o mundo funcionar sem política? Poderá encontrar um caminho eficaz para a fraternidade universal e a paz social sem uma boa política?”, pergunta-se o Papa Francisco. E a resposta é um sonoro “não”. Papa Francisco é incisivo nesse aspecto. Ele diz que, embora se faça o mau uso do poder político, com falta de respeito à lei etc, sem a política só sobraria o poder do mais forte do ponto de vista econômico. E reitera que a política não deve ser submetida à economia e a economia não pode ficar refém do modelo eficientista da tecnocracia. Sem isso não há paz, não há bem comum, não há fraternidade e amizade social. Só pela política podemos realizar o sonho de uma terra sem males e realizar sonhos duradouros de paz e justiça social. O mercado não resolve tudo. O mercado sem a política pode até gerar riquezas materiais mas, além de gerar desigualdades inaceitáveis, gerará a ideia de que somos concorrentes, egoístas e desinteressados com o desenvolvimento integral da pessoa humano e o cuidado com a casa comum. É por conta disse que o Papa fala da necessidade da política e, conectado à tradição da Doutrina Social da Igreja, reafirma que a política é a forma mais alta de caridade. Um ato governamental ou uma lei do parlamento pode mudar o destino de milhões. Então, como não considerar a política como caridade? (FT 180-185). Só a política pode nos tornar partícipes de um povo com destino comum. Fora dela seremos somente indivíduos atomizados, com interesses mesquinhos e superficiais, com atos de caridade isolados e que pouco resulta na construção eficaz da fraternidade universal e a amizade social.
A atividade do amor político:
Neste item o Papa Francisco, num primeiro momento, retoma Santo Tomás de Aquino que faz uma distinção entre amor “elícito” e amor “imperado”. O primeiro brota da virtude da caridade subjetiva e pessoal dirigida a pessoas e a povos. A segunda forma de amor diz respeito ao amor social e político que impele para ações de alcance social e para a construção de instituições e estruturas que garantem o bem. Papa Francisco utiliza um exemplo para clarear o sentido das duas atividades amorosas. Diz o Papa: “Alguém ajuda um idoso a atravessar a rio, e isso é caridade primorosa, mas se o político lhe constrói uma ponte, isto também é caridade. É caridade se alguém ajuda outra pessoa fornecendo-lhe comida, mas se o político lhe cria um emprego, exerce uma função sublime de caridade que enobrece a sua ação política”(FT 186). Tanto a caridade pessoal quanto a política, recorda o Papa, tem na opção preferencial pelos pobres o seu alvo central. Contudo, a opção não é de manutenção da pobreza, mas em vista da recuperação da dignidade, promovendo participação efetiva na sociedade sem cair no assistencialismo que humilha e torna os pobres “seres domesticados e inofensivos” (FT 187). Para tanto, o político necessita de um olhar amoroso, amplo, construtor de grandes projetos, preocupado com os direitos humanos e com a promoção do bem comum, superando o espírito mercantilista e individualista, encontrando soluções eficazes para exclusão social, a violência, a fome e as injustiças de toda ordem (FT 188-189). Além disso, para um bom político, não deve faltar capacidade de ouvir e se abrir aos apelos e sofrimentos que vem dos outros, encaminhando soluções e resoluções de conflitos, sem fanatismos e fechamentos que promovem intolerâncias e cultura do ódio. Por fim, do bom político espera-se a ternura e o amor que espalham esperança e não medo, semeie soluções e não intrigas, aponte para horizontes largos e não fique nas miudezas da vida, que se comunique com alma e com coração e não simplesmente busque resultados e pense em manutenção do poder. Tudo isso enobrece a política e dignifica o humano.
Como se vê, nas mãos do Papa Francisco a política se escreve com P maiúsculo e os altos interesses dos povos e dos pobres são enobrecidos e levados a um patamar superior, rebaixando, em contrapartida, os mesquinhos interesses daqueles que falam mal da política ou dela se valem para defesa dos inconfessáveis e escusos interesses próprios e do mercado.
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