O Papa Francisco abriu a encíclica Laudato Si’, no primeiro capítulo, falando sobre o que “está acontecendo com a casa comum” e, agora, na Fratelli Tutti, na mesma lógica do método ver, julgar e agir, ele abre o primeiro capítulo da Encíclica para fazer uma resenha dos principais problemas ou “tendências do mundo atual que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal” (FT 9). O método se mantem. Não se ilumina e se julga a realidade e não se propõe soluções sem um bom diagnóstico. O Papa faz um diagnóstico apontando, cirurgicamente, o que lhe parece ser as “sombras de um mundo fechado”, com dificuldade para sair do “Eu” e se abrir em diálogo para o “nós” e o “bem comum”, para a “fraternidade universal”.
A realidade é analisada em cinco pontos, apresentando as sombras espessas que cobrem o céu e que dificultam a penetração dos raios solares da fraternidade universal. No final, uma fala sobre a esperança.
1. Sinais de regressão e o fim da consciência histórica
Depois de algum tempo em que o mundo pareceria ter aprendido com as “guerras e os fracassos” e caminhado para um tempo de paz e integração, com unidade e em respeito à diversidade, tanto na Europa quanto na américa latina, agora, o que se vê são sinais de regressão. O Papa aponta alguns sinais: a) retorno de conflitos que se pensava serem superados; b) ressurgimento de nacionalismos fechados e agressivos; c) ideologias populistas neoliberais que promovem discursos de egoísmo e perda do senso e direitos sociais, mesmo que “mascarados por uma suposta defesa dos interesses nacionais”; d) globalização dos mercados que tornam todos vizinhos, mas não irmãos, em que os mais fortes impõe seu modo de ser, desconhecendo identidades regionais, submetendo a política à economia para além de todos as fronteiras, causando desagregação por todos os lados; e) perda da consciência histórica. Respiramos ares de perda do sentido de pertença, de herança, de tradição, de enraizamento que conduz, sobretudo os jovens, a uma postura de começar tudo do zero, descontruindo por desconstruir, mesmo que a desconstrução seja de valores e sistemas de vida consagrados e que, se desprezados, levam ao vazio e a uma liberdade abstrata e facilmente manipulada. A perda da consciência histórica, geralmente, vem acompanhada da regressão da capacidade de pensar criticamente e pela alienação da própria consciência, em que as palavras “justiça”, “democracia”, “liberdade” são sequestradas para justificar qualquer ação, mesmo com sentido e fins contrários ao que verdadeiramente essas palavras deveriam carregar (FT 10-13). A perda consciência histórica resulta num presentismo perigoso, sem passado e sem perspectivas de futuro.
2. Política sem projeto para todos, descarte, direitos humanos pela metade e medo
O segundo ponto aponta para quatro aspectos que dificultam a fraternidade social. a) O primeiro diz respeito a uma tendência de políticas sem projeto comum, privilegiando projetos de interesse privados, que se valem de táticas de criar desconfiança e inimizades, envenenando assim o tecido social, criando um clima de todos contra todos onde “vencer é sinônimo de destruir”, desqualificando o debate e não permitindo que os “outros tenham direito de existir e pensar”, beneficiando, deste modo, os mais fortes que dividem para governar. Diz o Papa: “Dessa forma, a política deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem comum, limitando-se a receitas efêmeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro” (FT 15). No interior dessa lógica, pergunta o Papa, “como se pode levantar a cabeça para reconhecer o próximo ou ficar ao lado de quem está caído na estrada? “Nesta cultura parece que o cuidado com o que é comum e com a casa comum são, hoje, nada mais do que delírios e as vozes que se levantam para defender essas bandeiras são, no mais das vezes, ridicularizadas ou banidas. b) O segundo aspecto diz respeito à cultura do descarte. A cultura do descarte se manifesta em duas direções: i) de coisas e alimentos; ii) de humanos. Em relação aos humanos o Papa é muito sensível tanto com os que “ainda não servem” e são descartados, pelo aborto, quanto aos idosos, que já “não servem mais”. Na pandemia do Covid19 o sacrifício de idosos foi notável. Mas não só. O descarte é uma cultura dentro do sistema capitalista que privilegia e organiza a sociedade para alguns e faz pouco caso a outros. O Papa acusa, nesse aspecto, a obsessão por reduzir custos trabalhistas, retirando direitos conquistados e privilegiando o capital em detrimento dos postos de trabalho, com o consequente desemprego em massa “alargando as fronteiras da pobreza”. Além disso o descarte se manifesta no racismo, apesar de pensarmos estar superado. Em relação ao descarte de coisas e alimentos, é uma pena que o Papa não esteja atento ao drama dos animais que são maltratados na criação, torturados e mortos aos bilhões todos os anos. Tanto sofrimento animal para o nosso prazer gastronômico não seria uma absurdo e injustificado descarte? c) O terceiro aspecto trata das sombras existentes em torno dos direitos humanos. Direitos humanos são aqueles direitos que os humanos têm simplesmente por serem humanos. Nesse sentido, valem universalmente, pois se crê que o humano, por ser humano, porta em si uma dignidade intransferível e sem preço. Porém não é assim que acontece. Parece que os direitos humanos só valem para os “humanos direitos” e, supostamente, há humanos “tortos” que não merecem ser tratados igualmente. A contradição entre a afirmação dos direitos humanos e a prática efetiva é flagrante. Diz o Papa: “persistem hoje, no mundo, inúmeras formas de injustiças, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um modelo econômico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o homem”. Enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, outra parte vê sua dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada, e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados” (FT 22). Afora essa dimensão mais ampla, há ainda o caso dramático da mulher e da escravidão. Sobre as mulheres o Papa diz: “em todo mundo ainda está longe refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens” (FT 23). Alguém poderia imaginar que a escravidão já passou, só que não! A escravidão reduz o ser humano a uma coisa, a um objeto, a um meio e não fim em si mesmo. As suas variadas formas atentam contra a dignidade humana e afronta a Deus, pois à imagem Dele fomos criados. d) Um quarto aspecto diz respeito ao constante estado de guerra que ainda se manifesta e que o Papa tem identificado como “terceira guerra mundial em pedaços”. O espírito de unidade é mais difícil de manter e, facilmente, a cultura contemporânea se deixa seduzir pela negação do “outro” e do “diferente”, tratando-o não como alguém de direitos iguais, mas de potencial inimigo a ser combatido e vencido. O Papa tem insistido na ideia de derrubar muros que dividem e arquitetar pontes que nos unem. E alerta: “quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes. Porque lhe falta a alteridade” (FT 27). Essa postura causa “solidão, medo e insegurança”, terreno fértil para o crime organizado e as máfias de vários matizes que se apresentam como “protetores” da comunidade, contudo, submetem a comunidade aos seus interesses inconfessos.
3. A globalização, o progresso sem um rumo comum e a pandemia
O Papa não desconhece o progresso e os avanços da tecnologia na área da medicina, indústria e o bem-estar dela decorrente. Contudo, lamenta a falta do sentido ético do progresso e da globalização do mercado. Neste particular chama atenção para a regressão do senso de responsabilidade e pelo descaso aos valores espirituais que, em não acompanhando o progresso, pode levar a “frustração, solidão e desespero”. Quando o progresso não é acompanhado de desenvolvimento humano integral, o que se pode dizer é que é um progresso sem rumo humano. Na medida que isso ocorre o sonho de “construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia de outros tempos” (FT 30). O que o Papa sinaliza nesse ponto é que há uma cisão entre interesses privados e rumos comuns da humanidade e isso causa um descompasso entre bem-estar de alguns e desigualdades insuportáveis de outros. Papa Francisco insiste em dizer que é preciso superar a cultura do isolamento e confronto, liberando energias para uma cultura de paz e de encontro. A pandemia parece ter despertado, pelo menos por algum tempo, a consciência de que somos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco e que a vida e saúde do outro importa, porque “o mal de um prejudica a todos”. Além disso a pandemia nos despertou para a mentira de que o mercado possa ser a nossa garantia. A pandemia nos obrigou a repensar os estilos de vida, nossas relações, as organizações de nossa sociedade e, sobretudo, o sentido de nossa existência. Por algum momento ficamos mais sensíveis, solidários e até pensativos quanto a possível relação entre nosso modo de habitar o mundo como causa do vírus. Seria uma lástima se “rapidamente esquecemos as lições da história, mestra da vida”, diz o Papa. Passada a crise sanitário o que permanecerá de solidariedade, sensibilidade para com os idosos e com a natureza? Se voltarmos ao consumismo desenfreado da “vida normal” e não “recuperamos a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade...ficaremos à mercê da angústia e do vazio” e o “salva-se quem puder”, rapidamente, redundará em “todos contra todos” (FT 36).
4. A dignidade dos Imigrantes
Se há uma voz que clama, não no deserto, mas sobre os mares, em defesa dos imigrantes, essa voz é a voz do Papa Francisco. O imigrante é o “outro” por excelência, e a relação que mantemos com ele é o teste cabal para definir se somos humanistas e cristão ou se somos xenófobos, nacionalistas e egoístas. O Papa compreende que há um medo natural e instintivo que nos protege do estrangeiro, contudo, não ultrapassar o instinto é abdicar da ética e da religião. O Papa provoca as consciências a ultrapassarem os instintos primários de autodefesa, porque “uma pessoa e um povo só são fecundos se souberem criativamente integrar no seu seio a abertura aos outros” (FT 41). Não ultrapassar os instintos primários, fechar-se e armar-se de intolerâncias nos privam do encontro com o outro que é o que nos faz verdadeiramente humanos e cristãos. É inaceitável, diz o Papa, que os cristãos partilhem da mentalidade xenófoba, de gente fechada e dobrada sobre si. Independente dos motivos que leva alguém a migrar - guerras, perseguições ou fugas de regimes autoritário ou até mesmo crise climática - o que se espera de um humanista cristão é que a hospitalidade ainda seja uma virtude a ser alimentada para garantir “a dignidade inalienável de toda pessoa” que nos convoca para um “sentido de responsabilidade fraterna”, sem a qual passaremos atestado de incoerência entre o que professamos e o que fazemos. Os maiores inimigos da fraternidade universal, nesse aspecto, são os populismos nacionalistas e as economias ditas liberais que pensam que os pobres e imigrantes são pessoas descartáveis, um peso para as economias e não considerados “suficientemente dignos de participar da vida social como os outros” (FT 39). Se negarmos a dignidade humana, independente da condição social, racial e religiosa de qualquer humano, estão estaremos hospedando em nós o vírus da indiferença que leva ao racismo e a xenofobia.
5. A ilusão da comunicação
No passado se dizia que a maior solidão era aquela vivida na multidão. Pois, agora, a multidão chegou. A revolução das massas, de Ortega Y Gasset, agora se tornou real. Estamos todos conectados e virtualmente no mesmo “ambiente”, contudo, cada um protegido em sua bolha. As redes reduzem as distâncias, porém não reduzem a ignorância que parece invencível. Desaparecem as distâncias, diminui-se a privacidade e aumentou a intolerância e atitudes fechadas. A sociedade do espetáculo de que falava Guy Debord, se efetivou e nas redes “tudo se torna uma espécie de espetáculo que pode ser espiado, observado, e a vida acaba exposta a um controle constante...esvai-se o respeito pelo outro e, assim, ao mesmo tempo que o apago, ignoro e mantenho afastado, posso despudoradamente invadir até o mais recôndito de sua vida” (FT 42). Por outro lado, os meios digitais de comunicação, além de criarem dependência, promovem o isolamento e “perda progressiva de contato com a realidade concreta, dificultando o desenvolvimento de relações interpessoais” (FT 43). O essencial escapa aos meios digitais para uma verdadeira comunicação. Diz o Papa: “fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana” (FT 43). A comunicação digital não é, portanto, suficiente para criar pontes e unir a humanidade, até pelo contrário, faz recrudescer a verdadeira amizade e a construção do “nós”, afirmando-se cada vez mais o individualismo exacerbado e cancelador do outro. Mas, o pior nem é isso. O pior é a aceleração da agressividade despudorada. As redes liberaram o que há de pior em matéria de insultos, difamações, falsas informações, impropérios, afrontas verbais destrutivos do outro e “um desregramento tal que, se existisse no contato pessoal, acabaríamos todos por nos destruir mutuamente” (FT 44). Esse ambiente e essas atitudes fomentaram as ideologias do ódio e deu asas aos mentecaptos políticos. “Aquilo que, ainda há pouco tempo, uma pessoa não poderia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune” (FT 45). O Papa diz que há três recursos que a humanidade dispõe para superar a cultura do ódio, preconceito e da vida em bolhas que se tornou os meios digitais. São recursos que apelam para a sabedoria, mais do que pela ânsia de informação quantitativa, culto ao eu e ao espetaculoso. Primeiro, a verdadeira comunicação requer a sabedoria do encontro com a realidade, sem os filtros seletivos de cancelar o que desagrada e só curtir e compartilhar o que agrada. Segundo, a sabedoria requer silêncio e escuta. Ou se supera a postura sofística de querer destruir o argumento do outro antes mesmo que ele o apresente ou então não haverá caminho para a fraternidade universal. Para isso o silêncio e a escuta acurada que leva a empatia, é o que se pode pensar de melhor em termos de sabedoria. E, por fim, é preciso se abrir à verdade que só será possível no diálogo, mas para isso é imprescindível que haja “espíritos livres e dispostos a encontros reais” (FT 50).
6. Esperança
Tudo isso poderia dar a impressão que o Papa é um pessimista, mas não é. É um realista esperançoso. “Apesar dessas sombras densas que não se devem ignorar, nas próximas páginas desejo dar voz a diversos caminhos de esperança” (FT 54). Um cristão não tem direito de ser pessimista, assim como não tem direito de ser intolerante, preconceituoso, egoísta, defensor dos poderosos, contra os pobres e a favor do mercado total. Assim é o Papa Francisco, esse raio de esperança que nos convoca a sermos audaciosos e caminharmos na esperança, apesar das sombras que persistem, teimosamente, sobre nossas cabeças.
Comments