Imaginemos um mundo sem diálogo, onde a regra seja o cancelamento, o fechamento, a elevação do eu prepotente a um patamar que não olha para ninguém, a ninguém vê e escuta e, sobretudo, que não busque acordos, consensos, unidade para nada e que tudo seja resolvido no soco, no grito e na violência. Dá para imaginar um mundo assim? E o pior, dá para desejar viver num mundo assim? Se a resposta for sim, então esse mundo já não seria humano, pois o humano tem no logos, no discurso, na conversa, na linguagem, na comunicação e no diálogo, seu modo peculiar de ser. O humano mora na comunicação, na linguagem e no diálogo. Fora dele, a barbárie! Fora do diálogo não há salvação. Essa parece ser a tese do capítulo VI da Fratelli Tutti que o Papa Francisco elabora em quatro pontos.
Diálogo social para uma nova cultura:
O diálogo é o meio termo de ouro entre a indiferença egoísta e a violência. A indiferença afasta um do outro evitando o encontro. A violência vai ao encontro do outro, atropelando-o. Nem uma nem outra atitude constrói fraternidade e amizade social. Só o diálogo tem o poder de criar pontes para a fraternidade universal. Diálogo não só entre indivíduos, mas entre gerações, entre povos abertos, dialogo no interior de um país e suas riquezas culturais – cultura popular, cultura universitária, cultura artística e tecnológica etc. Agora, é preciso distinguir diálogo de “troca de opiniões”. Troca de opiniões não passam de um monólogo esquizofrênico com a solidão. Opinião cada um tem a sua e não se chega a acordos, consensos ou a verdade mediante opiniões. Na arena das opiniões sai-se de uma conversa exatamente como se entrou. Ás vezes, sai-se até pior do que se entrou, pelo clima de guerra, disputa e agressividade que costuma se estabelecer, sobretudo, nas mídias e redes sociais. O verdadeiro diálogo tem algo de essencial e inegociável a ser buscado, a verdade e o bem comum. Fora do horizonte da verdade e do bem comum, isto é, do terceiro para além dos dialogantes, diz o Papa Francisco, o que há são “meras negociações visando à obtenção de poder e de maiores vantagens possíveis”(FT 202). O diálogo social autêntico requer o respeito pelo ponto de vista do outro e, previamente, considerar como legítimas as crenças e convicções do interlocutor. Para um genuíno diálogo não se pode entrar com o interesse sofístico de derrotar e vencer o outro, mas com espírito de mútuo convencimento para que o resultado seja a expressão da verdade ou o bem a ser buscado em benefício da sociedade. Essa postura só é possível se houver uma base comum de desejo e busca da verdade que está sempre para além dos pontos de vista que podem levar ao relativismo ou ao consenso interesseiro e momentâneo.
A base dos consensos:
Para o Papa Francisco o diálogo é o caminho seguro se os dialogantes estivem de acordo quanto a necessidade de transcender tanto o relativismo quanto o consenso sem base na verdade objetiva e valores permanentes que estruturam as sociedades. Papa Francisco não abdica da metafísica do ‘em si” da verdade e do “em si” dos valores morais e, nesse aspecto, critica tanto o relativismo quanto uma teoria da verdade baseada no consenso provisório e, às vezes, manipulável. Que o relativismo seja algo a ser evitado, parece haver acordo em todos as vozes mais lúcidas de todas as áreas do conhecimento e da vida prática. A questão a ser debatida é quanto ao consenso. O Papa insiste numa tese muito cara na tradição filosófica e teológica que pressupõe a verdade e o bem e pressupõe que a razão humana seja capaz de reconhecê-los, pois negá-los seria cair em contradição teórica e em consequências indesejáveis do ponto de vista moral. A lei e o consenso, diz o Papa, repousam sobre a verdade, sem o qual não teriam razão de ser e seriam objeto de manipulações dos mais fortes que se aproveitam da sociedade plural em benefício próprio. “Temos de ter prática em desmascarar as várias formas de manipulação, distorção e ocultação da verdade nas esferas pública e privada. O que chamamos de “verdade” não é só a comunicação de fatos pelo jornalismo. É, em primeiro lugar, a busca de fundamentos mais sólidos que sustentam nossas escolhas e nossas leis. Isso significa aceitar que a inteligência humana pode ir além das conveniências do momento atual e aprender algumas verdades que não mudam, que eram verdade antes de nós e sempre o serão. Indagando sobre a natureza humana, a razão descobre valores que são universais, porque dela derivam” (FT 208). Uma frase dessas faz os sofistas, Nietzsche e os teóricos do consenso sem verdades absolutas se remexerem no túmulo, mas o Papa não se deixa abalar pelo barulho dos corpos se revirando. Ele sabe com quem dialoga, mesmo que os dialogantes estejam ocultos. Com coerência firma seu lugar de fala e espera que o interlocutor possa apresentar seus argumentos. E para o interlocutor oculto, Papa Francisco recorda que sem essa base para o consenso, não há como falar em dignidade humana, direitos humanos fundamentais e tudo viraria uma questão de cálculo de vantagens e desvantagens. Sem valores universalmente válidos como considerar o valor intrínseco de um deficiente mental, de um idoso que já não produz, de um mendigo que nada contribui para a sociedade etc? Como dizer que um bilionário e um miserável têm valor moral igual se tudo for relativo ou se fruto de um mero consensos provisórios? É por conta disso que, numa sociedade plural, o diálogo é o caminho mais adequado para a formação de consensos baseados na verdade e no bem a serem buscados. Um diálogo de razões abertas em que se busque consensos ancorados na verdade e no respeito de valores permanentes, para o bem da sociedade e de cada um (FT 112-113).
Uma nova cultura:
Papa Francisco cita o poeta e músico brasileiro Vinicius de Morais como uma espécie de frase síntese da cultura do encontro: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”. O Papa é um apaixonado pela cultura popular e sabe bem que o povo ama se encontrar, embora haja tantos desencontros. A cultura do encontro é a cultura da acolhida da diferença para formar uma unidade mais alta e rica com a participação de todos, sobretudo dos que regularmente estão à margem, nas periferias geográficas, sociais e econômicas. O Papa não se cansa de apelar para a construção de pontes que superem os muros que nos separam. Cultura é algo que vingou no povo, que penetrou no cotidiano e que faz parte das convicções e aspirações mais profundas e se manifesta nos estilos de vida, no modo de viver e nos hábitos do cotidiano. Assim, falar de cultura do encontro, diz o Papa, “significa que, como povo, somos apaixonados por querer encontrar-nos, procurar pontos de contato, construir pontes, planejar algo que envolve a todos. Isso se tornou uma aspiração e um estilo de vida” (FT 216). As vantagens de uma cultura do encontro são inúmeras. Dentre as principais está a paz. Pode haver paz por cima e construída em escritórios, por medo, por força, e essa sempre será passageira. A paz que vem do encontro, do reconhecimento da dignidade do outro, da integração dos diferentes, da amizade social, que inclua os deserdados da terra é a mais difícil, mas é a mais sólida, verdadeira e duradoura. Tudo isso é processual e precisa ser estimulado, ensinado e vivido. Por outro lado, quando não há a cultura do encontro e não há o reconhecimento da dignidade dos outros, sobretudo dos pobres, a instabilidade será a regra e, cedo ou tarde, a consequência vem e, às vezes, na forma mais indesejada possível das múltiplas formas de violência. Por isso, o Papa insiste na necessidade de um pacto social e um pacto cultural “que respeite e assuma as diversas visões de mundo, as culturas e os estilos de vida que coexistem na sociedade”(FT 219). Pacto se faz com identidade e interesses diferentes e, por tanto, exige que cada uma das partes ceda para o bem comum. Não dá para os poderosos quererem tudo e mais um pouco...!
Recuperar a amabilidade:
Quão amável é uma pessoa amável! Quão amável é uma pessoa respeitosa, carinhosa, educada, pacificadora, tolerante, aberta, de presença elegante e que cultiva hábitos simples como dizer “obrigado”, “com licença”, “por favor”, “desculpe”. Quão amável é uma pessoa generosa, benigna, colaboradora, que cria pontes ao invés de muros, que cria espaços de partilha, de encontros e de reconciliação ao invés de estimular o ódio e a vingança. Recuperar a amabilidade em tempos de individualismo possessivo, é um ato revolucionário de alto valor transformador. Num mundo do “salva-se quem puder”, agressivo, áspero, rude, cancelador, intolerante e promotor de ódio, a amabilidade se apresenta como uma virtude tão apreciável que quem a pratica “torna-se estrelas no meio da escuridão” (FT 222). Recuperar a amabilidade é recuperar a ética e a etiqueta ao mesmo tempo. Com ética e etiqueta, todos ganham e ninguém perde.
Quem não gostaria de viver num mundo de diálogo, de encontro e de pessoas amáveis? O Papa parece sugerir que se nós achamos bom viver num mundo assim, então deveríamos ser a mudança que desejamos que aconteça. “Vai, e também tu, fazes o mesmo” (Lc 10, 26-37), diz Jesus no final da parábola do bom samaritano.
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