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REI MIDAS

Há um dito popular que diz: “para bem conhecer uma pessoa, basta lhe dar poder“. Por hipótese, poderíamos pensar no poder máximo, divino mesmo. O que faríamos se tivéssemos poderes divinos? O que mudaríamos na criação de Deus? Por hipótese, ainda, imagine-se na condição de ter o poder mágico de transformar em ouro tudo o que você tocasse, você toparia? Não seria maravilhoso? Que tal fazer um teste? Foi o que aconteceu com o rei Midas, esse personagem secundário da mitologia grega, mas que dá o que pensar e o que tirar de lição.


Recordemos o mito.


Midas foi um famoso rei da Frígia e, na condição de rei, mantinha relação com Dioniso, o deus do vinho. Numa ocasião aconteceu um episódio que o fez entrar para a mitologia grega, não tanto pela sua perspicácia, mas mais pela sua idiotia e imprudência. Ele é um personagem que, tal qual Epimeteu, primeiro, faz depois pensa, primeiro age e, depois, vai ver o estrago feito. Na linguagem popular, poderíamos dizer que ele é um “trapalhão retardado”.


Tudo começa com a desventura de um outro personagem da mitologia grega: Sileno. Sileno é um deus menor, um deus de segundo escalão, no time dos deuses ele seria um reserva que só joga jogos sem muita relevância. Era feio de dar dó, careca, barrigudo, ostentava nariz incrivelmente achatado e orelhas de cavalo, peludas e pontudas, um “espanta crianças”. Contudo, a espantosa feiura era compensada pela sensatez e inteligência. Sensato e inteligente a tal ponto de Zeus, o chefão, confiar-lhe a educação de um dos seus filhos, Dioniso, o deus do vinho e da festa. E é com Dioniso que Sileno aprende os segredos mais profundos que o deus do vinho e da festa detinha. Sileno se torna um sábio, mas um sábio que tinha na, embriaguez, o seu “calcanhar de aquiles”.


Aliás, o episódio que envolve o rei Midas começa, exatamente, com uma embriaguez descomunal de Sileno que o faz se perder do séquito habitual dos foliões que acompanham Dioniso nas suas memoráveis festas e orgias. Perdido, sozinho, cambaleante, bêbado que nem um gambá, assim foi encontrado na floresta pelos “homens” do rei Midas. Estes o prendem e o levam ao rei. O rei Midas reconhece Sileno, pois também já tinha participado de festas e orgias patrocinadas pelo deus Dioniso. Midas não tem dúvida, manda soltar Sileno, pois sabe do apreço que o deus Dioniso tem para com Sileno e não pretende se indispor com o deus. Além de soltá-lo, oferece-lhe uma festa suntuosa que dura dez dias e dez noites e, depois, pessoalmente, o leva ao poderoso deus Dioniso.


Dioniso fica feliz com o retorno de Sileno e, como agradecimento a Midas, lhe oferece a oportunidade de escolher a recompensa que quiser, por ter-lhe devolvido o amigo. Midas não se faz de rogado e, pouco inteligente que é, ganancioso e cheio de cobiça, vai logo pedindo o que lhe parece o maior dos presentes. Em uma ação desmedida e exorbitante, pede ao deus que lhe conceda o poder de transformar em ouro tudo em que tocar. Midas não se deu conta de que a opção que Dioniso lhe deu era agradável, mas perniciosa, e caiu na tentação.


Dioniso concede o pedido e Midas volta para seu palácio, saltitando de felicidade, se divertindo com o mágico poder. Onde quer que tocasse, a transformação era imediata. Colhe uma espiga de trigo e vira ouro. Toca em uma árvore e esta se transforma em árvore dourada, toca em uma pedra e a pedra vira o metal brilhoso. Lava as mãos e a água brilha diante dos seus olhos. Mal consegue se conter de felicidade e contentamento imaginando o que irá fazer a seu favor. “Estou rico, rico, o mais rico do mundo”, exclamava o imbecil. Jubiloso, chega ao palácio e, tal uma criança, vai logo tocando nos cômodos, nas paredes, no assoalho, nos utensílios e tudo se transforma no colorido metal. Cego pela cobiça, não se apercebe da desgraça que se avizinha. A alegria é tamanha que lhe abre o apetite. Manda os servos lhe servirem bebida e comida. No momento em que pega a taça de vinho e a leva à boca é um horrendo pó amarelo que lhe escorre por sua boca. O ouro não é bom para se beber. Agarra uma coxa de frango e taca-lhe uma mordida e quase quebra os dentes no resistente metal. Ouro não é bom para se comer. É aí que o imbecil se dá conta da armadilha que a hybris lhe armou e cai na conta do tamanho da burrada que cometeu. Não deseja outra coisa a não ser se livrar da maldição e do poder fúnebre de transformar em morte o que é vivo, inorgânico o orgânico, pervertendo a riqueza de verdade que é a diversidade na sua beleza e utilidade.


Midas, então, humildemente retorna a Dioniso, reconhecendo que se excedeu e errou na escolha agradável, mas perniciosa, de tudo transformar em ouro. Midas implora para se livrar do funesto poder, ao que lhe é concedido por Dioniso, que já previa a desgraça no ato mesmo do pedido. Dioniso solicita que Midas vá se banhar na nascente de um rio, mergulhando a cabeça para lavar, tanto o corpo quanto o erro que, imprudentemente, cometeu. E assim fez...!


Moral da história.


Esse mito pode ser interpretado de muitas formas e com variados acentos. Pode-se pensar que o cerne do mito seja um chamado à virtude moral que resiste à ganância e avareza. Pode-se pensar que o mito quer nos pregar uma lição de não confundir o essencial com o secundário, a verdade com a aparência e que o castigo, fruto do desvio e do pecado, foi mais do que merecido. Pode-se pensar, ainda, que o mito queira nos dizer que é ilusória a tentação do ter e que o dinheiro não traz a felicidade a ninguém. Tudo isso tem lá seu momento de verdade, mas há algo mais. O mito parece, sim, querer dar uma lição de ordem moral e psicológica, mas, mais propriamente, de ordem cosmológica. A perversão da natureza em seu equilíbrio e harmonia, constituídos na diversidade, parece ser o central no mito. O “toque de Midas” é um toque ameaçador da ordem cósmica e aí está o grande erro, mais do que o elemento subjetivo da tragédia.


Com o “toque de Midas” o que ocorre é, na verdade, uma perversão da natureza que porta em si, na sua biodiversidade, a beleza, a bondade e a utilidade. O “toque de Midas” opera ao contrário do “toque de Deus” que cria e vê que tudo é bom, quando em seu devido lugar. Midas se comporta mais como monstro e como antideus, diabólico mesmo, pervertendo e transformando em morte onde há vida, assim como os “novos Midas” transformam em cinza as florestas e os animais. Tudo em nome do deus moloch que, no popular se chama: Dinheiro! Será que os que estão pervertendo e destruindo a beleza, a bondade e a utilidade da natureza terão um dia a humildade de reconhecer o erro e “mergulhar de cabeça” no rio da vergonha e culpa? Sem a indignação popular organizada, talvez não!

 
 
 

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